Quais são as vantagens e desvantagens dessa implementação?
O pagamento em dia das contas de água, luz e telefone ganhou um forte aliado: o Cadastro Positivo. Grande tendência mundial, a estratégia representa uma metodologia moderna de concessão de crédito que consiste em criar um sistema de banco de dados, relativo tanto à pessoa física quanto jurídica, para subsidiar a concessão de crédito, a realização de venda a prazo ou de outras transações comerciais e empresariais que impliquem em risco financeiro. O Cadastro Positivo é o oposto dos cadastros existentes hoje: em vez de listar os clientes que não pagaram pontualmente suas dívidas, lista aqueles que cumpriram seus compromissos em dia.
De autoria do deputado Bernardo Ariston (PMDB-RJ), ainiciativa ainda não é uma realidade no Brasil. Nos últimos dias de seu mandato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou integralmente o projeto, aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 2010, que instituiria um sistema de Cadastro Positivo. Mas, em contrapartida, ele baixou a Medida Provisória (MP) 518, que ainda será votada pelo Congresso, incluindo regras que asseguram a privacidade do consumidor.
Amplamente utilizado nos Estados Unidos e em diversos países da Europa, o Cadastro Positivo permite que as informações sobre o pretendente ao crédito sejam compartilhadas entre os diversos setores da economia (comércio, indústria, mercado financeiro e serviços), nos quais são valorizados os dados positivos, ou seja, os pagamentos honrados pelo consumidor.
No Cadastro Positivo, o comportamento financeiro do consumidor é analisado valorizando-se os pagamentos efetuados dentro do prazo estabelecido na operação de crédito. Dessa análise, o consumidor receberá uma classificação (A, B, C, D ou E) ou uma pontuação (de zero a mil), que corresponde “à probabilidade de o consumidor se tornar inadimplente em um prazo determinado”, segundo definição do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
A ideia é que, de posse das informações, as instituições financeiras possam cobrar juros mais baixos de quem paga suas contas em dia e taxas mais altas daqueles que já atrasaram pagamentos no passado – e que, portanto, estariam mais propensos a fazer isso novamente.
“O modelo de cadastro existente faz uma relação pela média, ou seja, ‘o bom paga pelo ruim’. Quando as empresas tiverem acesso também aos dados positivos do consumidor, isso não ocorrerá mais. Cada qual terá os benefícios inerentes ao seu comportamento, o que me parece muito mais justo”, afirma Roque Pellizzaro Junior, presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL).
Dessa forma, uma das intenções do governo com a criação do Cadastro Positivo é reduzir o spread bancário – considerado um dos fatores que mais influenciam na alta das taxas de juros. Atualmente, as instituições financeiras calculam os juros a serem cobrados dos clientes com base no índice de inadimplência. No entendimento de alguns economistas, se o risco de crédito for calculado a partir de um banco de dados de bons pagadores, o peso da inadimplência no cálculo do spread será reduzido substancialmente.
Renato Pasqualin, consultor da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), destaca a difícil mensuração da redução da taxa de juros: “Apoiamos o Cadastro Positivo e acreditamos que será um instrumento de crescimento da economia e de acesso ao crédito. Porém, vale destacar que é muito difícil mensurar o percentual da redução dos juros ou o volume de crescimento do crédito. A redução da taxa de juros e o aumento do crédito são resultado de vários fatores e não somente da implementação do cadastro. A inadimplência sempre existirá e sempre será um componente do spread bancário. Dessa forma, o risco não irá acabar”.
Com a implementação do Cadastro Positivo, pessoas físicas também poderão contar com financiamentos e empréstimos com juros mais acessíveis, o que ajudará no planejamento de um futuro negócio. Para comprovação de seu histórico de bom pagador, elas poderão utilizar comprovantes de contas de água, eletricidade, gás e telecomunicações, com exceção dos serviços de telefonia celular.
“Hoje, os grandes bancos e os grandes varejistas já possuem sistemas que se aproximam ao que teremos com o Cadastro Positivo. Essas ferramentas, no entanto, estão longe da realidade das pequenas empresas que, devido a isso, perdem competitividade. Porém, com a legalização e a entrada em operação do Cadastro Positivo pelos birôs de crédito (empresas que mantêm os dados cadastrais), essas micro e pequenas empresas terão acesso a esses dados e retomarão sua competitividade nos mercados em que atuam”, explica o presidente da CNDL.
Cenário mundial
Dados da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi) mostram que nos Estados Unidos, antes da implementação do cadastro, 40% dos consumidores tinham acesso a financiamentos, proporção que passou para 80%. No Chile, o Cadastro Positivo aumentou o acesso das mulheres ao crédito em até quase igualdade aos homens. No México, por sua vez, houve maior acesso ao crédito para a baixa renda. Na Alemanha, onde o crédito era pouco difundido, ele chegou a ser três vezes superior à média internacional. Na China, havia exigência de mais garantias para créditos raros, restringindo, assim, o crescimento da economia. Hoje, o crédito atinge mais que o dobro do PIB no país. O Brasil é o único do G20 que não tem adesão ao Cadastro Positivo e também o único do Bric, grupo que inclui ainda Rússia, Índia e China.
Crédito responsável
Estudos do Banco Central mostram que, nos últimos cinco anos, o número de brasileiros com dívidas superiores a R$5 mil, considerando todos os tipos de empréstimo, saltou de 10 milhões para 25,7 milhões. A preocupação é que, embora muitos dos consumidores que devem mais de R$5 mil possam ter esse valor dentro de seu limite de crédito, outros tantos já estão mais endividados que poderiam e, portanto, com alta probabilidade de inadimplência.
“Hoje, os bancos não têm informações compartilhadas sobre seus clientes, o que aumenta o grau de incerteza ao conceder um empréstimo. Da forma como o sistema existe atualmente, é possível um mesmo cliente tomar empréstimos em bancos diferentes, comprometendo seu orçamento. Nesse formato, as instituições financeiras contribuem para o endividamento de forma irresponsável”, explica Renato Pasqualin.
Atualmente, o volume de dívidas dos brasileiros corresponde a 39,1% da renda, de acordo com o Banco Central. E mais: uma parcela de 23,8% fica comprometida mensalmente com o pagamento dos débitos existentes. Nos EUA, com juros muito baixos, 17% da renda fica comprometida com o pagamento de débitos. E o volume de dívidas dos americanos chega a 128% da renda, lembrando que tanto no Brasil quanto nos EUA os números referentes a financiamento imobiliário entram nessa conta.
Para especialistas, a implementação do Cadastro Positivo representa o primeiro passo para o país evitar uma crise de superendividamento. “Hoje, o nível de informação é muito baixo nos meios de crédito, o cadastro do Banco Central só tem informações de credores acima de R$5 mil. Se o Cadastro Positivo penetrar na camada menor de renda, com informações sobre esses consumidores, todos serão beneficiados com avaliações mais completas de risco de crédito. Nesse formato, as instituições financeiras terão uma atuação de orientação ao consumidor, contribuindo para o crédito responsável”, enfatiza Pasqualin.
Por meio desse cadastro, será possível saber não só o perfil das dívidas – quanto está no comércio, no setor de serviços, etc. – como também qual é a capacidade de pagamento do cidadão. Com a vigência do Cadastro Positivo, essas empresas terão que comunicar também toda vez que o consumidor pagar uma conta em dia. “Com um fluxo de recursos proveniente de um crédito mais ágil, rápido e barato, podemos evitar crises principalmente por ter acesso a uma base maior de dados do cliente e, portanto, mensurar sua capacidade ou não de honrar seus compromissos”, diz Roque Pellizzaro Junior.
A Serasa Experian divulgou recentemente um raio X dos efeitos da implementação do Cadastro Positivo com a previsão de que a medida beneficiaria 26 milhões de consumidores que têm histórico positivo, mas estão alijados do sistema financeiro. Na geografia da exclusão, dos 26 milhões que poderiam ser incluídos com o Cadastro Positivo, 10,5 milhões estão no sudeste, 8 milhões no nordeste, 3,2 milhões no sul, 2,3 milhões no norte e 1,9 milhão no centro-oeste.
As simulações da Serasa Experian atestam que a introdução do Cadastro Positivo poderia gerar uma injeção de R$1 trilhão na demanda de crédito dos consumidores, agregando potencial de consumo equivalente a 10 milhões de casas (R$773 bilhões), 5,9 milhões de carros novos (R$206 bilhões), 25,6 milhões de eletrodomésticos (R$25 bilhões) e 22 milhões de novos eletrônicos (R$22 bilhões). Esse consumo elevaria a relação crédito/PIB dos atuais 45% para 81%.
Transparência e segurança ao consumidor
Apesar das vantagens que a criação do Cadastro Positivo promete trazer para o mercado, especialistas dizem que é necessário cautela na utilização desse histórico dos bons pagadores, principalmente no que diz respeito à privacidade dos dados do consumidor e segurança no repasse das informações.
Roberto Meir, especialista em relações de consumo e presidente da Associação Brasileira das Relações Empresa Cliente (Abrarec), explica que a proposta não estabelece nenhum tipo de regra para a criação do banco de dados dos bons pagadores. “Não existe nenhum sistema que garanta a segurança na utilização dos dados, bem como a forma como será repassado entre empresas e bancos. Nesse cadastro, haverá informações pessoais, como compras e valores. Qual será o cuidado com a privacidade dos dados do consumidor?”, questiona Meir.
O especialista analisa ainda que nem todos os bons pagadores utilizam cheques ou cartões. “Se eu sou um consumidor que pago todas as minhas contas à vista, considerado o melhor cliente de todos, não terei registro no Cadastro Positivo. Dessa forma, serei prejudicado com a limitação de acesso ao crédito pela falta de histórico no sistema”, ressalta.
Geraldo Tardin, presidente doInstituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), compartilha da mesma opinião: “O CadastroPositivoirá contribuir para a discriminação contra o consumidor, aumentandoo valor dos produtos para o consumidor não positivado ou que não quiser ser positivado. Além da discriminação, que cria duas categorias (positivados e não positivados), o consumidor certamente terá seus hábitos de consumo expostos”.
Algumas dessas possibilidades de problemas foram amenizadas com a edição da MP, que apresenta maior compatibilidade com as regras constitucionais, e do Código de Defesa do Consumidor. Um dos pontos apresentados na MP foi a necessidade de autorização prévia e por escrito para a abertura do cadastro e o compartilhamento das informações. Além disso, a MP também garante ao consumidor cancelar os dados quando ele quiser, acessar gratuitamente as informações e corrigir imediatamente qualquer dado errado. Conhecer os critérios considerados para análise de risco, ter prévia informação sobre a identidade do gestor do banco de dados, saber a finalidade do armazenamento e do tratamento dos dados e os destinatários em caso de compartilhamento das informações também são direitos do consumidor garantidos na MP.
Para a gerente jurídica do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Maria Elisa Novais, é uma vitória do consumidor o veto ao Projeto de Lei n° 263 e a MP é uma iniciativa que detalha melhor a regulamentação. “A questão é que os direitos do consumidor foram garantidos na MP, mas precisam ser de conhecimento da coletividade. Algumas disposições se assemelham a alguns artigos do Código de Defesa do Consumidor sobre o direito à informação e sobre a qualidade dessa informação, mas a possibilidade de o consumidor autorizar que determinadas informações sejam agregadas ao seu histórico de crédito, bem como de conhecer os critérios para avaliação do risco na concessão de crédito, merece ser destacada como direito importante. Outro ponto relevante é a necessidade de autorização prévia e por escrito para abertura de cadastro e compartilhamento das informações”, destaca Maria Elisa.
Ainda que não haja consenso a respeito do tema, o Cadastro Positivo tem a representação de uma mudança cultural do brasileiro. Os benefícios não acontecerão de imediato, mas será possível evitar que as pessoas assumam dívidas sem terem condições de pagar, estimulando uma postura mais responsável quanto ao consumo e à concessão de crédito. “Facilitando o acesso ao crédito, hoje pessoas muito boas e bem intencionadas não possuem acesso a ele se não tiverem garantias para viabilizá-lo. Essa ‘garantia reputacional’ trará agilidade e viabilizará o consumo e os investimentos”, finaliza Roque Pellizzaro Junior.