Por João Guilherme Brotto
No ano 2000, Kofi Annan, diplomata ganês e então secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), lançou o Pacto Global. O objetivo era estimular empresas a seguirem, voluntariamente, um conjunto de estratégias e operações ligadas a dez princípios universais nas áreas de Direitos Humanos, Trabalho, Meio Ambiente e Anticorrupção.
Quatro anos depois, Annan assinou uma carta em nome do Pacto Global intitulada “Quem se importa ganha”, endereçada às 50 maiores instituições financeiras do mundo, conclamando o sistema a incluir pautas ambientais, sociais e de governança em suas práticas. Este texto é o primeiro registro oficial da sigla ESG, que representa práticas ambientais, sociais e de governança (do inglês environmental, social e governance).
Apesar de a discussão ter começado há quase duas décadas, o debate ESG só ganhou tração no meio empresarial nos últimos anos. Se no começo do século XXI a discussão que partia da ONU era voltada ao sistema financeiro, agora ela é parte do dia a dia de organizações que entenderam que o mundo pós-pandêmico caminha para um um redesenho do que é (e a quem serve) o capitalismo.
Os CEOs e Conselhos estão sendo cobrados. Em 2019, a já tradicional carta anual de Larry Fink, chairman da BlackRock (maior gestora de ativos do planeta), teve grande repercussão no mercado financeiro e ajudou a propagar os conceitos ESG. No documento, Fink diz que a mudança climática se tornaria um dos pilares de sua política de investimentos.
E não parou aí. Na carta de 2021 a cobrança aumentou. A BlackRock quer um mundo carbono zero até 2050, e quem não tiver isso como foco vai sair do portfólio e do radar da gestora e deixará de abocanhar uma fatia dos quase 9 trilhões de dólares da gestora.
O gráfico abaixo, que mostra o volume de busca pelo termo ESG no Google desde 2004, ilustra como tais movimentos institucionais se refletem na realidade. Perceba como o debate, que ficou escanteado por um tempo, ganhou força nos últimos anos.
Especialistas são unânimes em falar que as pautas ESG não podem ser vistas como uma onda, mas sim como uma nova fase no ambiente de negócios e no capitalismo.
Seja por razões baseadas em um propósito honesto ou por interesses de mercado, as empresas estão em transformação e buscando se adequar a um contexto desafiador, que passa a exigir preocupações que vão além do lucro e do retorno ao acionista. Cedo ou tarde, isso vai impactar suas vendas.
Como surge uma tendência
Há alguns anos, entrevistei David Mattin, então diretor global de tendências do Trendwatching, uma das maiores autoridades do mundo em análise de tendências. Quando perguntei o que faz com que um fenômeno passe de tendência para realidade, ele explicou que isso ocorre quando vários fatos, sinais e movimentos se conectam, o que pode levar décadas para acontecer.
No caso ESG, o combo composto por avanços tecnológicos, urgência climática, registros históricos, mudanças no comportamento de consumo, transformações geracionais e posicionamentos de quem detém as rédeas do mercado é certeiro para explicar o argumento de Mattin. Assim, pode-se dizer que estamos no exato ponto de consolidação da tendência em realidade quando falamos em ESG.
Mas o que é, na prática, ESG?
Trazer conceitos ESG para o dia a dia das organizações tem a ver, sobretudo, com cultura, valores e pessoas. “Nada acontece se não mudarmos a cultura da organização. Não adianta implantar ESG sem passar por essas etapas de revisitar o propósito e fazer uma mudança importante na cultura organizacional”, alerta Francine Pena Póvoa, sócia da Legacy4Business, consultoria com foco em estratégia e comunicação de práticas ESG, cultura organizacional e gestão da mudança.
Ela reforça que o primeiro passo para transformar culturas é a alta gestão compreender que é possível construir um modelo de negócio mais responsável, que isso está sendo cada vez mais exigido pelo mercado e pela sociedade e que os olhares estão atentos. Segundo Póvoa, empresas que adotam critérios ligados a ESG tendem a colher os seguintes resultados:
- Colaboradores mais engajados. As pessoas veem um sentido maior no trabalho que fazem. Em momento de crise, esses colaboradores estão mais empenhados a persistir.
- Relação de confiança com fornecedores. Não são apenas fornecedores, mas parceiros que vão ajudar a construir soluções para os desafios.
- Comunidade e sociedade querem essas empresas perto delas. Ao contrário de muitas organizações que são boicotadas, empresas que seguem o “caminho ESG” são admiradas pela comunidade.
- Mais lucro e retorno ao acionista. Seus clientes são mais fiéis, pagam mais caro pelos produtos/serviços e os investidores têm maior resultado financeiro.
A orientação aos stakeholders entra em cena
É nesse contexto que a orientação aos stakeholders ganha popularidade e mostra que novos tempos exigem novas formas de fazer negócios.
A constatação de que uma visão interdependente está ligada não somente a criar diferenciais competitivos, mas à própria sobrevivência de um negócio, aos poucos vai sendo assimilada.
O próprio Fórum Econômico Mundial tem se preocupado em levantar essa bandeira. No início de 2021, Klaus Schwab, presidente da entidade, publicou um livro sobre o assunto. Em Stakeholder Capitalism: A Global Economy That Works for Progress, People and Planet (Capitalismo de Stakeholder: uma economia global que trabalha para o progresso, para as pessoas e para o planeta, em tradução livre – ainda não publicado no Brasil), Schwab reconhece que o sistema econômico está quebrado e mostra o caminho para uma economia que funcione para todas as pessoas e para o planeta.
Investidores estão fugindo de organizações alheias à urgência climática e consumidores mais exigentes – e ativistas – não deixam as organizações serem detentoras das narrativas. O poder está descentralizado.
A mudança é real, e o que está à frente exige novas formas de se pensar a gestão. “A nova onda de valor virá da interdependência e da consciência, com mais direção e foco. Estamos saindo da mera filantropia corporativa, das campanhas de voluntariado e de ações isoladas para o valor compartilhado. Quando entendermos que ESG e sustentabilidade podem gerar lucro, aí sim teremos empresas inovadoras”, analisa Hildengard Allgaier, consultora de sustentabilidade.
Quando o ESG faz parte do dia a dia da empresa
Um bom caso para estudar e entender como uma empresa pode atuar de fato com foco nos stakeholders é o da Patrus Transportes, que está construindo uma cultura ESG baseada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030.
Sob a gestão da segunda geração da família e perto de completar 50 anos de história, a Patrus Transportes tem 85 unidades, mais de três mil funcionários e atuação em estados do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil.
O Relatório de Sustentabilidade da empresa é estruturado a partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e todos os Objetivos da Agenda 2030 são contemplados por uma ou várias ações. “Temos uma matriz de materialidade e prioridade. Alguns ODS casam mais com nosso negócio, aí estudamos como a força da empresa pode nos ajudar a trabalhar em prol deles de forma mais efetiva”, resume Vinícius Braga, Gerente de Saúde, Segurança e Sustentabilidade da Patrus.
O primeiro passo foi analisar o que já era feito pela empresa para entender de que forma cada ação ou projeto se relacionava com os ODS. “Algumas ações fazíamos sem pensar que eram de caráter social e ambiental, mas os ODS nos ajudaram a ter mais clareza. Hoje, olhamos para eles pensando em como podemos contribuir. Para que possamos gerar o Relatório de Sustentabilidade, precisamos ter uma base de dados. Então, começamos a acompanhar indicadores sociais, de saúde, segurança, benefícios e tudo que tem relação aos ODS. Nosso relatório é muito baseado nisso”, explica Katia Rocha, Diretora de Gente, Gestão e ESG da Patrus.
Os indicadores ESG que a empresa monitora seguem as normas da Global Reporting Initiative (GRI), organização internacional independente que ajuda empresas a assumirem responsabilidade pelo seu impacto econômico, ambiental e social. Vinícius conta que os indicadores ESG são acompanhados com a mesma importância que os financeiros. Na matriz da Patrus há um painel de controle, monitorado em tempo real.
Entre os mais de 200 indicadores monitorados, estão: emissão de CO2, geração de resíduos, destinação dos resíduos, métricas de voluntariado e dos projetos sociais. “Vamos cada vez mais a fundo para ter uma ação mais coerente com o que o mundo pede. Para isso, a empresa criou novos departamentos e incluiu o ESG no planejamento estratégico e na Missão. A criação de uma diretoria que tem ESG no nome mostra que isso é importante. Se você não cria essa identidade, as pessoas não entendem”, explica Katia.
“Hoje, cada diretoria da Patrus tem uma responsabilidade no todo, algo que precisa entregar para que sejamos uma empresa referência no segmento de transporte no quesito sustentabilidade”, compartilha a gestora.
Vinícius destaca que um reforço fundamental para o engajamento é o fato de as ações sociais e ambientais desenvolvidas pela Patrus serem direcionadas à comunidade que cerca os funcionários. “Tentamos contribuir onde conhecemos a realidade. E isso gera um engajamento grande, porque quando vamos fazer alguma ação, muitas vezes é uma instituição que muitos colaboradores conhecem. Inclusive, vários se voluntariam. Não precisamos fazer incentivos como dar um dia de folga, as pessoas se doam naturalmente. Afinal, como está dentro da comunidade dela, é possível ver o resultado”, conta.
Além disso, o fato de os colaboradores estarem envolvidos nos projetos desde a formulação estratégica também contribui para o engajamento. “Os funcionários também trazem demandas para nós trabalharmos, o que gera um engajamento grande. Há uma consciência de que fazemos não só em prol da empresa, mas olhamos para o meio ambiente e social e as pessoas compram a ideia”, comemora o gestor.
ESG como ferramenta para atração e retenção de talentos e clientes
Um dos resultados indiretos que motiva muitas empresas a buscarem certificações como a de empresa B e Great Place to Work e/ou a aderirem a uma gestão ESG é a atração e retenção de talentos.
A Patrus, além dessas certificações, coleciona prêmios de sustentabilidade e de melhor fornecedor de empresas como Natura, Grupo Boticário, 3M, Alpargatas e outros, além de ser reconhecida por associações e revistas de negócios.
Nesse contexto, quando se fala em prospecção e fidelização de clientes e colaboradores, a dinâmica acaba se tornando um ciclo virtuoso. Vinícius celebra que vários clientes valorizam o pioneirismo nas questões ambientais. “Temos clientes que exigem receber os números da geração de carbono do serviço que contratam porque têm a sua meta de redução e desenvolvemos ações em conjunto. E temos clientes que, por termos a informação, nos procuram para iniciar sua trajetória da sustentabilidade”, revela.
O que fica dessa conversa é que um novo ambiente de negócios está em construção e será cada vez mais difícil aumentar vendas e construir marcas fortes se a empresa não entender que precisa assumir responsabilidades ambientais, sociais e de governança. Em alguns anos as métricas ESG serão tão relevantes quanto indicadores financeiros.
O mapeamento de stakeholders como um ativo de inovação
O campo de tendências e inovação tem pouco a ver com um momento eureka e mais com processos, práticas, autocríticas e questionamentos recorrentes. E quando falamos em trazer sustentabilidade e impacto positivo para a inovação, um caminho é o mapeamento de stakeholders.
“Parece bobo, mas muitas empresas não têm política de relacionamento com a comunidade, com universidades, com governos e não têm políticas de bem-estar. A boa notícia é que a ausência traz oportunidades. Quando, enquanto empresa, estou conversando com vários públicos de interesse, com instituições que têm poder de influência e influenciam meu negócio, tenho vários tipos de oportunidade de melhorias”, aponta Hildengard.
Uma boa forma de fazer o mapeamento de stakeholders é por meio da Avaliação de Impacto B (BIA), ferramenta gratuita do Sistema B que serve como um processo de autoanálise para a organização entender onde pode melhorar nas cinco áreas que são analisadas no processo de certificação de empresas B.
O preenchimento do BIA é o primeiro passo da certificação, mas pode ser utilizado gratuitamente sem compromisso em obter o selo de empresa B. Além disso, o BIA também pode ser um ponto de partida para levar o debate para a empresa e até mesmo encontrar oportunidades de inovação na cadeia de stakeholders. Abaixo estão algumas perguntas presentes nas cinco áreas que compõem a avaliação.
ESG: 15 perguntas para uma autoanálise inicial
Comunidade
Sua empresa possui políticas ou programas para promover a diversidade em sua cadeia de abastecimento?
Que percentual das despesas da sua empresa (excetuando as despesas trabalhistas) foi gasto com fornecedores independentes locais, ou seja, próximos da sede da empresa ou de instalações relevantes?
Quais medidas a sua empresa toma em relação a doações ou investimentos voltados para a comunidade?
Clientes
Algum dos produtos/serviços da sua empresa aborda problemas sociais ou econômicos dos consumidores e/ou de seus beneficiários?
Como poderia descrever os resultados indiretos positivos que seu produto/serviço promove para os clientes?
O produto ou serviço da sua empresa beneficia a populações carentes, seja diretamente ou apoiando organizações que prestam serviços a essas populações?
Meio ambiente
Os processos ou produtos/serviços da sua empresa estão estruturados para recuperar ou preservar o meio ambiente?
Que porcentagem da energia utilizada pela empresa é gerada a partir de fontes renováveis?
De que maneira a sua empresa monitora e administra a sua produção de resíduos?
Governança
De que maneira a sua empresa integra o desempenho socioambiental na tomada de decisões?
De que maneira a sua empresa apoia a gestão interna e a boa governança?
Quais informações são divulgadas pela empresa de forma pública e transparente?
Trabalhadores
Que porcentagem dos funcionários da empresa (considerando a equivalência a funcionários em tempo integral) recebe, no mínimo, um valor considerado como salário digno para uma pessoa?
Quais oportunidades de capacitação sua empresa oferece aos trabalhadores para seu desenvolvimento profissional?
Excetuando os fundadores e executivos da empresa, que porcentagem dos funcionários em tempo integral e em meio período recebeu uma bonificação monetária no último ano fiscal?
Para Dario Neto, diretor-executivo do Capitalismo Consciente Brasil, braço brasileiro do movimento internacional que reúne pessoas e empresas que trabalham para redesenhar o capitalismo, ESG não é apenas uma tendência, é a única forma de se fazer negócios. “O ESG chegou nas organizações, se misturou com a demanda da sociedade, dos clientes, da força de trabalho e dos jovens. E o fato de ter sido reforçado pelos donos do dinheiro, que perceberam que mudança climática e desigualdade mexem no ponteiro do retorno, evidencia que não tem outro caminho. Vira prioridade zero porque captação de recursos é prioridade de qualquer empreendedor. Fazer essa mudança cultural será uma questão de sobrevivência. Em algum grau, já é em alguns mercados”.