Ciência x zona de conforto: de que lado você fica?

Imagine que um grupo de atletas deva correr uma maratona com os seguintes desafios:

  1. Devem completar a prova em menos de 4h – tempo considerado como excelente para corredores experientes.
  2. Devem correr descalços!

Digamos que neste grupo tenhamos dez atletas experientes. Na sua opinião, quantos cruzarão a linha de chegada em menos de 4h? Um, no máximo dois, talvez?

Agora pense no seguinte cenário: os atletas recebem os tênis na largada, não precisando mais correr descalços. Quantos cruzarão a linha de chegada em menos 4h?

Por mais óbvios que os resultados destas duas situações sejam, todos os dias empresas colocam seus vendedores para correr uma maratona descalços e entregam a eles o par de tênis somente quando fecham vendas. Não é à toa que na maioria das empresas apenas um ou dois vendedores conseguem ter sucesso…

O que diz a ciência

O par de tênis, no caso da profissão de vendedor, chama-se segurança financeira, e inúmeros estudos científicos revelam que a incerteza sobre o tamanho do salário ou sobre a quitação de todas as despesas mensais, impede vendedores de terem as mínimas condições para alcançar bons resultados, pois estão “correndo descalços”.

Rajita Sinha, cientista da Universidade de Yale, realizou um estudo acompanhando as mudanças na estrutura cerebral de pessoas que passaram por períodos prolongados de estresse financeiro e descobriu que indivíduos que vivem sem saber se pagarão suas contas sofrem uma redução no volume do córtex pré-frontal. Sim, insegurança financeira reduz a quantidade de massa cinzenta no cérebro, piorando seu desempenho.

Outros estudos revelam que o estresse causa a liberação do hormônio cortisol, provocando a ativação da amídala, parte do cérebro responsável pelo processamento do medo, da insegurança e da ameaça. Como nosso cérebro tem como uma de suas principais funções a economia de energia, a ativação da amídala provoca o desligamento parcial de outra região cerebral, o córtex pré-frontal, responsável pela resolução de problemas complexos, tomada de decisões, raciocínio, planejamento, projeção do futuro, criatividade, entre outras cognições que demandam altos níveis de energia.

Isto significa que, além do estresse trazer uma redução no tamanho do córtex pré-frontal, ele ainda o desliga, “retirando os tênis” dos vendedores antes mesmo da maratona começar.

Sem o funcionamento adequado do córtex pré-frontal, profissionais de vendas não conseguem ter boa argumentação, raciocinar sobre os possíveis problemas que enfrentarão nas negociações, tomar decisões que beneficiem ambos os lados ou ter criatividade para vencer as objeções dos clientes. Quem acaba pagando um preço ainda maior pela estratégia de remuneração apenas via comissionamento são as próprias empresas, que fecham menos negócios do que poderiam.

Além de tudo isso, a ciência revela que comissões não geram os resultados que as empresas esperam…

Como o dinheiro afeta a performance

Em 2002, cientistas da Duke, Carnegie Mellon, Boston University e University of California separaram participantes em três grupos para realizar seis tarefas diferentes. Caso as pessoas tivessem excelente performance, os incentivos financeiros ofertados seriam os seguintes:

  • Grupo 1: Um dia e meio de salário
  • Grupo 2: Duas semanas de salário
  • Grupo 3: Cinco meses de salário

Qual dos grupos teve melhores resultados? Caso siga a intuição presente em qualquer ambiente corporativo, você apostaria que o terceiro grupo foi o que apresentou melhor performance, certo?

No entanto, por mais contraditório que pareça, em cinco das seis tarefas, o grupo 3 foi o que teve o pior desempenho. E este é apenas um entre os milhares de estudos científicos sobre o tópico que chegaram à mesma conclusão.

Isto significa que dinheiro não motiva? Pelo contrário, dinheiro motiva, sim. Porém, motivação e desempenho são coisas diferentes.

Os cientistas Robert Yerkes e John Dodson descobriram que a motivação e o desempenho aumentam juntos até um certo ponto. No entanto, quando a motivação de uma pessoa passa do ponto ideal, o seu desempenho começa a piorar.

O problema do dinheiro não é que ele não motiva e sim, que ele motiva demais, a ponto de prejudicar a performance das pessoas. Adicionalmente, comissões podem trazer consequências ainda mais avassaladores para as empresas.

Cientistas de Harvard e da Washington University realizaram um estudo no qual, antes de realizar uma tarefa em troca de dinheiro, um grupo de participantes visualizava US$ 24, e outro grupo visualizava US$ 7 mil. Durante a tarefa, os participantes tinham a oportunidade de trapacear. Qual dos dois grupos trapaceou mais em sua opinião? O resultado foi que 85,2% das pessoas do grupo que visualizou uma grande quantidade de dinheiro trapacearam na tarefa, contra apenas 38,5% do grupo que viu uma pequena quantidade de dinheiro, mostrando claramente que incentivos financeiros aumentam as chances de vendedores cometerem atos de desonestidade.

Provavelmente, você deve estar pensando que ser trapaceiro depende da criação da pessoa, de sua religião, de sua personalidade, entre outros fatores, porém, os cientistas controlam estas variáveis e, neste caso, ficou evidente que foi o dinheiro que causou o comportamento inadequado.

Poucas empresas se atentam ao fato de que se incentivos financeiros funcionassem da maneira que imaginam, todo vendedor seria milionário e não existiriam empresas com problemas de faturamento. Mas é esta a realidade? Se comissões fossem a melhor forma de remunerar vendedores, dificilmente veríamos apenas um ou dois vendedores se destacando em equipes de dez pessoas.

Felizmente, estes problemas têm uma solução relativamente simples…

A tese posta em prática

Em 2013, fui até uma loja da Apple nos Estados Unidos, para trocar o meu iPhone. Ao entrar na loja, rapidamente comecei a testar um telefone igualzinho ao que eu já tinha, de 32GB. Quando a vendedora veio me atender, eu disse que queria aquele aparelho, no entanto, ao invés de simplesmente atender o que pedi, ela pediu para ver meu telefone antigo. Alguns minutos depois, ela disse o seguinte: “o senhor não precisa de um iPhone de 32GB, pois não usa nem perto desta capacidade”.

Ela sugeriu um iPhone de 16GB – lembrando que, naquela época, aplicativos como WhatsApp, Spotify e outros que consomem 16GB dos nossos telefones em um dia ainda estavam engatinhando. O que me surpreendeu foi o fato de que o aparelho custava US$ 100 a menos. Como alguém que trabalhava com vendas havia anos, eu nunca tinha presenciado tal comportamento de um vendedor. Percebendo a minha surpresa, ela me explicou: “eu não ganho comissões, o senhor pode ficar tranquilo, pois meu trabalho é tomar a melhor decisão para o senhor, não para o meu bolso”.

Descobri, então, que a Apple oferece um salário fixo alto para sua equipe de vendas (sem nenhum tipo comissionamento), gerando a segurança financeira que as pessoas precisam, livrando-as de cometer atos de desonestidade e possibilitando que o cérebro de cada profissional funcione em máxima capacidade – os vendedores da Apple ganham o par de tênis na largada da maratona! Ao lado da Apple, outras empresas como a Nike e as brasileiras Sankhya, Tecnofit e Quartos Etc usam a mesma estratégia, apresentando resultados extremamente positivos.

Talvez você esteja pensando que, com salário fixo, os vendedores entrarão na zona de conforto, certo? Mas, acredite, o ser humano não opera desta forma! Profissionais do financeiro, marketing e logística ganham salários fixos e, nem por isso, entram na zona de conforto e não cumprem suas metas. O salário fixo é a regra para quase todas as áreas de uma organização. O que faz as pessoas entrarem na zona de conforto é justamente o pagamento por comissões.

O vendedor pensa: “não vendi nada, mas também não recebi nada, então está tudo bem!”. Perceba que para a empresa o mesmo raciocínio é válido, assim, ela justifica facilmente a continuidade de vendedores com péssimos resultados. Lembrando que na maioria das vezes, o vendedor não vende nada justamente porque não ganhou nada no mês anterior, e a insegurança financeira o impossibilita de ter capacidade cognitiva para alcançar boa performance.

O que poucas empresas percebem é que quem está na zona de conforto são elas mesmas – a zona de conforto estratégica. Uma minoria delas questiona ou muda suas estratégias, muito menos aquelas profundamente enraizadas, como o pagamento de comissões na área de vendas. Curiosamente, muitas destas empresas gostam de dizer que são inovadoras e que “pensam fora da caixa”, mas a verdade é que adotam exatamente as mesmas estratégias que todas as demais usam.

Por mais que todo mundo queira “pensar fora da caixa”, o neurocientista Drew Westen, da Emory University, descobriu que quando as pessoas escutam fatos contrários às suas crenças – como, por exemplo, “comissões geram piores resultados” –, a área do cérebro responsável pelo raciocínio para de funcionar. É como se nosso cérebro nos protegesse de ideias diferentes.

Outros estudos demonstram que logo depois de escutarmos fatos contrários às nossas crenças, nosso cérebro entra em um processo chamado de confabulação, ou seja, começa a fabricar justificativas para descartar a informação nova, economizando energia e mantendo nossas crenças vivas. Então, eu posso apresentar todas as evidências científicas que levam à conclusão de que comissões geram piores resultados, mas seu cérebro irá confabular do mesmo jeito: “os estudos americanos não se aplicam no Brasil”, “na minha empresa é diferente”, “eu faço assim há 20 anos e sempre deu certo”.

E agora, vamos fabricar desculpas ou aplicar o que a ciência nos comprova como eficiente? Vamos munir vendedores com pares de tênis na largada ou vamos mantê-los correndo descalços?

Luiz Gaziri é autor dos livros A incrível ciência das vendas, A ciência da felicidade e Os sete princípios da felicidade,consultor, palestrante e professor de pós-graduação na FAE Business School, PUCPR e ISAE/FGV.

E-mail: [email protected]

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