Consumir faz ser

Durante muitos meses, ao sair e ao chegar em casa, uma figura sempre me chamava atenção. Se não estivesse na ladeira do parque perto de casa, estava na pracinha. Era a figura de um mendigo. Durante muitos meses, ao sair e ao chegar em casa, uma figura sempre me chamava atenção. Se não estivesse na ladeira do parque perto de casa, estava na pracinha. Era a figura de um mendigo.

Você deve estar pensando: ?O que tem de especial nisso? Há tanto mendigo por aí!?

Realmente não havia nada de mais ou de menos nele. Era um mendigo comum. Daqueles que vemos nos quatro cantos de uma cidade como São Paulo. Seria, sim, mais um mendigo comum, se não fossem algumas coisas que me chamavam atenção nele. E essas coisas não eram comuns nos mendigos que já vira por aí.

Ela possuía uma longa barba, era magro e tinha cabelos compridos. Suas roupas demonstravam estado de uso intenso. Porém, quando eu o via andando, carregava várias latas de 18 litros e, quando estava sentado, eu o via quase sempre escrevendo ou lendo algo. Esses são os pontos que chamavam atenção. Um mendigo escrevendo sem parar!

Minha curiosidade misturou-se a uma vontade de ajudá-lo e, em uma de minhas saídas, parei por ali.

? Olá, como vai? Meu nome é Cesar Romão! Posso me sentar por aqui?

? Oi, companheiro! Seja bem-vindo, meu senhor! Sente-se por aí, onde quiser!

? Como se chama, amigo?

? Meu nome é Raimundo, somente Raimundo, apenas Raimundo. Sou um sobrevivente que resistiu ao ataque de uma família que me julgou louco, por longo tempo, até que um dia fugi para a rua e aqui estou até hoje…

? O que tem nessas latas?

? Ah! As latas! Cada uma contém um pouco de minha vida. Aqui, algumas roupas; aqui, guardo comida; aqui apanho água… E nessa, está meu maior tesouro: meus escritos. É! Eu adoro escrever. Passo o dia escrevendo, depois dou um jeito de colar as páginas e vendo pequnso livros nos faróis por aí e, à noite, junto todas as latas que servem para apoiar a lona que me abriga.

? Raimundo, você escreveu todos esses livrinhos?

? É, seu Cesar, escrevi tudinho! E continuo a escrever, pois gosto disso.

? Você nunca pensou em sair da rua? Posso fazer algo por você?

? Não, não, seu Cesar. Já tentei muito, mas agora sou parte da rua. Não tenho mais como conviver na sociedade, nem saberia o que fazer. Por favor, não me dê muita ajuda. Os outros mendigos de rua vivem invadindo minha tenda, à noite, e roubam tudo de minhas latas… Aqui na rua não me falta nada; tenho tudo de que preciso.

Tornou-se praticamente um hábito para mim parar por ali, bater um papo com Raimundo, ouvi-lo ler seus escritos, como ele assim os intitulava, e, ao mesmo tempo, comprar seus livrinhos. Sua conversa era muito elucidante. Algo de nível, com muita propriedade. Um papo gostoso com alguém que tinha na mendicância um meio de sobrevivência, mas não de vida.

Um dia, notei que, naquela semana, Raimundo não tinha aparecido por ali e nunca mais o encontrei. Até que, num Sábado, passando por outra praça, em outro bairro, vejo-o em uma das travessas do mesmo jeitinho, na ilha da rua.

? Raimundo, você sumiu, rapaz! Por que saiu de lá?

? Oi, sr… ? ele já não se lembrava do meu nome e tampouco de minha pessoa. Ficamos por ali, juntos, como se tudo estivesse começando outra vez. E estava, porque ele não se lembrava de nada. Era a primeira vez que nos víamos novamente, depois de algum tempo.

Hoje não sei mais por onde ele anda. Nos lugares em que o encontrava, não está mais. Porém, depois de ler seus escritos, percebi que eram de alguém que tinha muito a oferecer à sociedade, embora estivesse sendo consumido pelas circunstâncias.

Raimundo era alguém. Independentemente de não possuir condições de consumo e um teto para morar, ele era alguém, mesmo sem ter ninguém. Era alguém pelo que tinha dentro de si.

Hoje, vejo pessoas que somente se sentem alguém em uma roupa nova, em um carro novo, em uma casa nova, na capa de uma revista, num cargo de chefia. Parece que atualmente as pessoas precisam as pessoas precisam de coisas para se tornar alguém. Claro que não sou contra um bom relógio ou uma boa marca, mas questiono a importância que damos a essas coisas, pois podem influir em nossa personalidade.

Olho para a matéria: ?Você tem mais brilho que qualquer grife. Você é a grande grife do Universo?

Frase: ?Todos querem ser donos; e ninguém é dono de si? ? Goethe

Para Saber Mais: Tudo Vai Dar Certo ? Editora Arx (www.edarx.com.br), de Cesar Romão.

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