O Russo da prestação

Uma história de um vendedor que mesmo desconhecendo as técnicas de venda as utilizava muito bem. Ele veio para o Brasil ainda pequeno. Um garoto no convés do navio, onde os idiomas se misturavam nas conversas de uma população esperançosa pelo volume de oportunidades e progresso prometidos do outro lado do mundo.

Esperança e vontade de trabalhar era tudo que traziam em suas bagagens. O garoto, em meio a sete irmãos, aos cinco anos de idade, orgulhoso pela decisão de seus pais, olhava a imensidão do oceano e sentia o frio cortante do vento do mar aberto, com absoluta certeza de que estavam indo rumo a salvação. O que significava o sacrifício da viagem para sua família, uma vez que os meses e anos anteriores, tanto na Rússia quanto na Alemanha, tinham sido de extrema pobreza, dificuldades e necessidades?

Via a atitude de seus pais com o heroísmo digno dos seus poucos anos e tinha a real confiança de que haviam tomado a decisão correta. Primeiro, deixando a Rússia, mais especificamente a cidade de Saritsina, às margens do rio Volga, depois, algumas passagens por províncias alemãs, até estabelecerem o destino brasileiro. Isso tudo, em 1910, às vésperas da Revolução Russa, em um dos maiores cenários de pobreza e analfabetismo já vistos até hoje, antes do contato com Lenin e seus ideais socialistas.

No Brasil, o clima ajudou muito, mas ele não encontrou facilidade em momento algum. Henrique, era esse seu nome! Cresceu, casou-se, teve três filhos e experimentou uma série de profissões. Vendedor de cortes de tecidos, enxovais (cama, mesa e banho), ser ?vendedor ambulante? pelas ruas de São Paulo foi seu primeiro desafio.

Inovou logo de cara. Passou a conceder crédito aos seus clientes. Estabelecia limites para que fosse aberta a famosa caderneta. A partir de então, passou a atender pelo apelido de ?Russo da prestação?. Imagine o tamanho da evolução: delivery e crédito imediato, sem consulta ao SPC, etc., no auge dos anos 30 e 40.

Em seguida, ao comprar uma carroça, passou a vender louças e talheres, migrando para frutas de época, em função de maior rentabilidade. Saía de casa todas as madrugadas, em seu meio de transporte, atravessava a cidade de São Paulo rumo ao Mercado Municipal. Lá, carregava a mercadoria e se dirigia para os bairros da zona norte da capital.

Algumas preocupações atormentavam sua mente: chegar com a mercadoria ainda fresca, reduzir as perdas com o calor, transporte, atender plenamente a clientela, receber um preço justo, criar seus filhos ainda pequenos e sobreviver.

Mesmo percebendo que os lucros poderiam ser maiores, sentiu que precisaria modificar seu estilo de comercialização. Era outra abordagem, outra argumentação, outro apelo, risco, valores de percepção e de negociação. Manteve, no entanto, a política de concessão de crédito. Afinal, tinha muito orgulho em ser o ?Russo da prestação?.

Os negócios iam bem, alguns calotes aconteciam, é verdade, mas eram raros para uma saudosa época em que muitos negócios eram feitos no ?fio do bigode?, muito diferente do que presenciamos hoje.

Um grave problema de saúde, na coluna, certamente originado e agravado pelo peso do trabalho e pelo impacto das rodas da carroça, nas já prejudicadas vias de São Paulo dos anos 40, fez com que o ?Seu Henrique?, o ?Russo da prestação?, deixasse sua promissora carreira. Pensou em abrir uma loja, mas não tinha mais saúde para isso. Passou a executar tarefas mais leves e que não exigiriam tanto de seu frágil corpo, no entanto, sua experiência comercial e raciocínio rápido o ajudaram a exercer várias outras atividades de muita responsabilidade. Chegou até a ser bilheteiro nos áureos tempos das filas intermináveis nos cinemas da capital.

Em 1991, aos 86 anos, o ?Russo da prestação? nos deixou. E eu perdi um dos meus heróis, um dos homens mais íntegros que conheci até hoje, perdi meu vovô Henrique. Na época, eu só pensava em outra carreira e jamais imaginei que atuaria na área comercial (na verdade, como uma grande parcela da população, eu não enxergava a importância, a nobreza e o profissionalismo dessa área). Que pena! Perdi enormes chances em minha vida, apesar da convivência intensa, de aprender uma ou talvez duas outras línguas (alemão e russo) e de absorver a farta experiência comercial desse homem.

Hoje, passaríamos tardes, talvez noites inteiras conversando sobre concessão de crédito, definição do estoque regulador, abordagem, negociação, descontos, técnicas de price premium, segmentação de clientes, etc. Tenho certeza de que, mesmo desconhecendo, ele utilizava-se de muitas técnicas, pois apesar do pouco estudo, era uma pessoa extremamente culta, conectada com todo tipo de informação da época.

O que será que ele diria sobre rapport, linguagem corporal, técnicas para lidar com objeções, metas, percepção de valor, posicionamento de preços, etc.? Muito, com certeza, teria muito a dizer.

Hoje, aos quase 40 anos, entendo de onde veio tanto apreço pela área comercial, pelo relacionamento interpessoal, pela motivação, superação e vontade de vencer. A cada nova vivência, nova experiência comercial, novo treinamento em vendas que ministro, só tenho a agradecer por essa sementinha plantada, quer seja pelo DNA ou, simplesmente, pelo saudável e saudoso contato que tivemos durante meus primeiros 23 anos da minha vida.

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