Uma coisa que colocaram na sua cabeça

Ninguém é de ninguém, na vida tudo passa…
Ninguém é de ninguém, até quem nos abraça…
(Na voz de Anísio Silva, com direito a chiado e fumaça de cigarro).

Corno não existe. Isso é só uma coisa que colocaram na sua cabeça.” A piada é velha, mas esclarecedora, pois, ao fazer uma revisão do conceito, determina de maneira inequívoca quem faz o que em quem.

Saber quem é o verdadeiro agente da ação é relevante em muitas situações. Num caso de infidelidade, por exemplo. O cônjuge infiel provavelmente terá várias justificativas; a parte traída relutará em reconhecer suas falhas e desatenções. Mas a decisão de trair ou não será sempre de quem trai e não da parte traída. Se pudéssemos escolher, certamente haveria menos infidelidade… da parte dos outros, certo?

Tudo isso para falar de fidelização, a nova palavra da moda. Caros empresários e maridos, perdoem-me por tirar-lhes a ilusão, mas fidelização é uma palavra que não significa absolutamente nada. Você não fideliza sua esposa, tampouco seus clientes. Um verbo indica ação e uma ação implica um agente. No caso da fidelidade, o agente é quem a pratica. Você é a parte passiva, o que sofre a ação. E sofre muito, às vezes…

Tentativas de fidelizar estiveram em voga na Idade Média, quando foi moda o cinto de castidade, peça íntima da indumentária feminina que – além de desconfortável e anti-higiênica – apenas dificultava as coisas sem inviabilizar o fato, pois, mesmo impedindo o ato, permitia suas variantes. Durante a Santa Inquisição tentou-se fidelizar os fiéis e preservar o monopólio religioso. Confiar seu harém a eunucos também não é solução absolutamente segura, pois a via homossexual ainda é um risco contornável – a concorrência é ardilosa e criativa… Práticas mutilatórias, além de brutais, apresentam triplo inconveniente: queda de demanda, de performance e infidelidade por revolta.

Ao longo do tempo foram tentadas fórmulas unilaterais para fidelizar clientes, como monopólio e reserva de mercado. Até funcionam por algum tempo, mas costumam acabar em divórcio. Litigioso.

A mesma coisa acontece com os contratos de exclusividade. Revendedores ou fornecedores submetidos a vínculos de exclusividade indesejada acabam se transformando em concorrentes. Linhas de produtos com arquitetura fechada também funcionam ao contrário, estimulando a infidelidade – vide Macintosh e Betamax, que perderam espaço na cama do mercado para o PC e o VHS, tecnologias abertas. Não se aprisiona o mercado. Ninguém é de ninguém, na vida tudo passa…

Tal como a conjugal, a fidelidade comercial precisa ser conquistada a cada dia. Com atenção, carinho, dedicação, diálogo, lealdade, responsabilidade e reciprocidade. É a outra parte que, num ato soberano de vontade, opta pela fidelidade. Contratar detetive particular não vai impedir nada. Quando muito, poderá gerar um flagrante de adultério. Chamar para si o direito de decidir sobre a fidelidade do outro, além de incorrer em grosseiro autoritarismo, é ineficaz. Mais sábio foi Vinícius de Moraes, casado oito vezes e traído por outras tantas, nunca deixou de amar: Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure.

Em vez de seguir a moda falando em fidelização de clientes, proponho que se trate a coisa pelo nome que sempre teve: conquistar a fidelidade dos clientes – pois fidelidade é coisa que se conquista. E as tais campanhas de fidelização de clientes, via de regra, são as velhas campanhas para a recuperação de clientes perdidos. Igual aos amantes infiéis que voltam no dia seguinte, negando tudo e pedindo perdão.

Visto assim talvez perca um pouco do charme do aparentemente novo, mas pelo menos não estaremos chamando “jacaré” de “meu louro”. Como dizia o poeta Marcos Prado: É o que é. Poderia não ser, mas é.

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